
...Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a pé
Mas o pobre vê nas estrada
O orvaio beijando as flô
Vê de perto o galo campina
Que quando canta muda de cor
Vai moiando os pés no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O cristão tem qui andar a pé
(Estrada de Canindé, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
Crônica da cidade grande
Gosto de caminhar. É a chance que tenho de sentir as pessoas e através delas reconhecer a cidade, suas entranhas e segredos. O vício do carro nos trouxe o encurtamento dos sentidos, a atrofia da visão. Não vemos além do que nos interessa, e ignoramos o que achamos não fazer parte do sentido do caminho: queremos chegar, descartamos o resto.
Houve ruas em São Paulo que só conheci de carro. Anos depois, passando por elas, me espantei com a vida que deixei de perceber, e com o que a pressa me induziu a ignorar. Moramos na cidade, mas nela quase já não vivemos. A urbanidade nos tornou seres sorumbáticos, arredios, desconfiados...
Tive o privilégio de crescer numa cidade pequena. Conhecia cada palmo de suas ruas, cada pedra do rio que a cortava ao meio, cada árvore e seus tempos de frutificar. Eu estava na cidade, da mesma forma que suas ruas caminhavam em minhas pegadas de moleque.
Um dia desses, caminhando na madrugada pelas íngremes ruas da Lapa paulistana, me surpreendi com o cantar de um galo, e com a lembrança que este som reavivou. Num átimo voltei à infância, a ponto de poder sentir a presença de meus irmãos e de minha avó dormindo a meu lado. No pontilhão ao lado da janela, o trem da madrugada marcava a hora exata.
Que som lembrará São Paulo? Buzinas e sirenas?
A urbanidade nos tornou cidadãos frios e pragmáticos. Fugimos da cidade grande, como se viver aí fosse um martírio, um sacrifício necessário na dura sina de ganhar a vida. O espaço solidário tornou-se o espaço frio da competição.
Caminhando pelas íngremes ruas da Lapa assustei-me com a infinidade de prédios em construção. E com a destruição de áreas que um dia tiveram significância na vida das pessoas. A cada prédio, serão inúmeros carros a entupir vielas e a reclamar por espaço. E em cada um, muros altos e cercas elétricas a proteger seres amedrontados.
Nas ruas da Lapa paulistana dei-me conta de que estamos destruindo memórias e referências. Não partilhamos mais o mesmo espaço. A São Paulo dos prédios e dos carros velozes concorre com a São Paulo dos cortiços e favelas e dos ônibus lotados.
Na cidade que um dia foi solidária, a chuva não mais encontra a terra, e graças a ela posso perceber a lição da natureza no verde que brota nas frestas e nas rachaduras do concreto...